Sobre os Aedos, os poetas cantores da Antiga Grécia
RESENHA do artigo: MORAES, Alexandre Santos de. Seria o Canto dos Aedos um Trabalho? In: LESSA, Fábio de Souza (org.). Poder e Trabalho: Experiências em História Comparada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008. p. 105-119.
LEITURAS
Marcus Figueiroa
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“Seria o canto do aedos um trabalho?” arriscando a interrogação no título, o autor se propõe a entender como as atividade dos aedos gregos do Período Arcaico podem ser compreendidas como trabalho, lembrando que o estatuto do trabalho na Antiguidade não atende às expectativas da lógica capitalista - aqui ele acorre a Jean-Pierre Vernant (VERNANT, J-P. Trabalho e Natureza na Grécia Antiga. In: Trabalho e Escravidão na Grécia Antiga. VERNANT, J-P e VIDAL-NAQUET, P. (orgs) Campinas, SP: Papirus, 1989) que lembra que o grego antigo sequer tem um termo correspondente a “trabalho” -, e que uma ideia tão complexa como trabalho, muda constantemente de orientação ao longo do tempo.
Alexandre Santos de Moraes é Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense (UFF), mesma universidade onde concluiu seu doutorado com a pesquisa “Curso de vida e construção social das idades no mundo de Homero (séc. X ao IX a.C.): uma análise sobre a formação dos habitus etários na Ilíada e Odisseia”, orientado pelo Prof. Dr. Ciro Flamarion Cardoso.
Sempre transitando na área de História Antiga, principalmente Homero, poesia oral tradicional, oralidade e escrita, mitologia, diferenças etárias e etnicidade no Mundo Antigo, graduou-se em História no Instituto de História (IH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com o trabalho “Os Mitos Hesiódicos e as Relações de Gênero em Atenas Clássica (séc. V a IV a.C.)” e teve este texto publicado quando era aluno do mestrado em História Comparada pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da mesma universidade com a pesquisa “A palavra de quem canta: aedos e divindades na Grécia Antiga”, ambos orientados pelo Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa.
Lessa é Professor Titular da UFRJ, vinculado ao Laboratório de História Antiga (Lhia) e ao PPGHC-IH - onde participa da Linha de Pesquisa História Comparada das Diferenças Sociais -, integra vários grupos de pesquisa entre a UFRJ, a UFF e a Universidade de Brasília, é ligado ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Letras também da UFRJ, membro colaborador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra e bolsista Cientista do Nosso Estado da FAPERJ.
O artigo integra o livro Poder e Trabalho: Experiências em História Comparada, publicado em 2008, organizado por Lessa, que escreveu a apresentação com um panorama histórico do PPGHC/IH da UFRJ e da sua orientação teórica e metodológica, defluente da proposta do Helenista Belga Marcel Detienne, que permite a criação de um ambiente de produção de conhecimento amplo e diversificado, como escreve ele, “[...]coletivo, sempre em construção, aberto a pluralidade de opções em relação ao recorte do objeto, tempo, espaço, métodos e conceitos[...]” (LESSA, 2008, p. 8)
A proposta de Detienne permite romper as barreiras temporais, espaciais e culturais, de acordo com Moraes, temidas pela tradição comparativista estabelecida por Marc Bloch, que procura complementar a documentação com o registro das presenças e ausências de fenômenos entre duas realidades, comparando séries análogas de eventos, dada a preocupação que este método gera de incorrer em anacronismos ou superficialidade.
Fiel ao método de Detienne que propõe o estabelecimento de comparáveis que orientam o historiador no processo comparativo e permitem uma grande flexibilidade na escolha dos objetos, relacionando-os através de um problema em comum (DETIENNE, M. Comparar o Incomparável. Aparecida, SP: Idéias e Letras, 2004) - Moraes estabelece como comparável a investidura na atividade de aedo.
Ao dar a resposta afirmativa a provocação que ele mesmo faz no título do artigo, Moraes compara a investidura dos deuses Hermes e Apolo como poetas, e descreve a elaboração de um ativo simbólico, embalado pela mitologia, que legitima a atividade de aedo como ofício, somando a isso referências da percepção da atividade dos aedos como prática do que é entendido como trabalho - que ele encontra não só na obra de Homero, mas através da leitura da Elegia a las musas de Sólon e de Os Trabalhos e os Dias e da Teogonia de Hesíodo. Ressalta ainda o papel da atividade na construção e na manutenção da glória (kléos) e da fama, uma função primordial na dinâmica social do mundo helênico.
Lembrando-nos a importância que esses poetas tinham para o mundo helênico, e que a mera tradução do termo (cantor, poeta) não dá conta da estatura deles, o autor define aedos como “[...]aqueles que, munidos de um instrumento de cordas, percorriam os banquetes oferecidos pela aristocracia palaciana, recitando os inúmeros mitos tradicionais.” (p. 108)
Os aedos certamente foram os grandes responsáveis pela elaboração e transmissão da mitologia helênica, e convenientemente - por dispor do meio - a da sua própria função. Além disso, a pedra de toque da paideia grega é a obra de Homero, o aedo modelar, o que estabelece o status social do aedo no mundo grego do Período Arcaico.
O autor acredita que numa sociedade tradicionalmente oral, onde é inegável a importância pedagógica dos mitos, podemos procurar entender os diversos aspectos da vida social observando as relações entre as divindades; ciente entretanto, de que há uma distância a ser considerada entre o discurso mítico e a determinação, por ele, da vida real, cotidiana, observa que os atributos que portam os deuses referendam diversas práticas concretas, no caso da atividade de aedo, isso acontece com Hermes e Apolo.
Moraes nos explica que: o canto dos aedos no Período Arcaico é presidido por 4 divindades, Mnemosyne e as Musas - memória e inspiração - e mais Apolo e Hermes, que se assumiram poetas e são representados nas imagens referentes às récitas dos aedos de forma antropomórfica; e que os Hinos Homéricos são a melhor referência para tratar deste assunto. Eles são prelúdios em homenagem a alguma divindade e os hinos de Hermes e Apolo são amplamente mais extensos que os outros. Apesar, nos adverte o autor, do adjetivo do título não garantir a autoria de Homero, parecendo ao contrário até, constatado o fato de serem de uma qualidade bem inferior às da Ilíada e da Odisséia.
Os dois são deuses antigos e populares, filhos de Zeus: Apolo, tem uma suposta origem oriental - pois porta o arco, e fica ao lado de Tróia na Ilíada - e é associado pela tradição ao pastoreio e à arte divinatória; já Hermes é associado ao universo da palavra e dos viajantes, porta um bastão de ouro (kerykeion) semelhante ao que usavam os rapsodos no período clássico - para bater no chão e ritmar a récita dos versos - é o mensageiro dos deuses e o condutor dos mortos ao hades. O uso da cítara pelos dois é o primeiro ponto de aproximação que desperta a atenção do autor.
Apolo, das suas origens, quando procura seu domínio de competência, reivindica a cítara e se proclama cantor dos desígnios de Zeus no intento de legitimar sua origem filial; Hermes ainda criança, ao contrário de Apolo, inventa a cítara, iluminado pela métis herdada do pai Zeus, porém com o mesmo interesse, cantar para louvar as suas origens e angariar seu prestígio no panteão olímpico.
A motivação dos deuses referenda a percepção que os gregos tinham da função da poesia e a concessão da sua arte pelas divindades referenda o canto do aedo. Conferir à inspiração divina das Musas o poder do canto e mostrá-lo exercido pelas divindades é além de mais uma legitimação, uma louvação às figuras míticas que propiciam aos mortais entrever o mundo dos deuses.
Também a extensa formação do aedo, que incluía o treinamento no uso do instrumento, a memorização dos epítetos e o domínio das tradições míticas, reitera o caráter de ofício da função, pois um canto bem entoado legítima o que diz o aedo, como aponta o autor.
A sagração de Hesíodo como poeta, pelas Musas (Teogonia vv. 22-23) - já que na condição de mortal ele necessita da concessão divina - feita através de elementos comuns a Hermes e Apolo (o cetro dado a Hesíodo, se assemelha ao kerykeion de Hermes e foi extraído de um loureiro, a árvore de Apolo) é aliás um ótimo exemplo que o autor usa aqui e que agrega mais uma aproximação entre esses dois deuses.
Moraes soma a este, exemplos tirados da Odisséia e, dos Hinos Homéricos, cita uma passagem do hino a Apolo, em que Hermes dança com Ares (Hino Homérico a Apolo vv. 200-203), e aproveita para nos informar que os cantos dos aedos também eram acompanhados de dança, que ajudavam a ritmar a récita e engajar a audiência, contribuindo para a criação de um ambiente extraordinário.
Do hino a Hermes ele cita a passagem que narra a escaramuça dos irmãos em torno do roubo das vacas de Apolo por Hermes, que finda com o pedido de Apolo, após ser seduzido pelo canto de Hermes, pela posse da cítara contradizendo o que canta o hino a Apolo, onde ele se torna aedo por seu próprio desejo. Na narrativa, é Apolo que, em troca da cítara dá para Hermes o kerykeion, o bastão dourado que aparece nas representações do deus.
Na continuação Hermes convence o irmão a dividir com ele o dom da adivinhação em troca da siringe, um instrumento de sopro inventado por ele (um instrumento que conhecemos também como flauta de Pan). Apolo concede a parte que lhe é admissível do pedido - o limite sendo uma possível desautorização de Zeus (Hino Homérico a Hermes vv. 418-423) -, e as práticas divinatórias adquiridas por Hermes aproximam os deuses mais entre eles e, pela analogia com o trabalho dos adivinhos, o dos aedos que dependem dessa aproximação para justificar a sua importância.
Moraes conclui o artigo com a percepção do sucesso dos aedos em estabelecer o seu status social e o valor sagrado da sua atividade, tendo a tradição continuamente reiterado em versos e representações dos seus deuses condutores, o caráter de trabalho do canto dos aedos.
O texto de Moraes consegue introduzir bem e sucintamente o leitor nas práticas comparativas ao longo da historiografia e colocá-lo dentro do universo da sua pesquisa com naturalidade. O autor passeia, com discreta erudição pela poesia e mitologia gregas, através de conexões interessantes e criativas, e nos propicia testemunhar que o exercício de escrita da História pode ser prazeroso e instigante sem abdicar da verticalidade da sua pesquisa.