Reinhart Koselleck, "Historia Magistra Vitae"
Reinhart Koselleck buscou demonstrar em seu ensaio intitulado Historia Magistra Vitae que as mudanças de forma e significado da palavra “história” na língua alemã, decorridas no século XVIII, correspondem a transformações mais amplas em torno das concepções de história, tempo e realidade na cultura ocidental. Com base na leitura do texto, tentei explicar aquelas que, segundo Koselleck, foram as principais dentre essas transformações.
LEITURAS
Marcus Figueiroa
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No segundo capítulo do livro “Futuro Passado - Contribuições à semântica dos tempos históricos” (KOSELLECK, Reinhart. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006.), intitulado muito significativamente, “Historia Magistra Vitae - Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento”, Koselleck identifica, acentuadamente no século XVIII, uma mudança no “lugar”(1) da história, que foi praticamente constante desde os gregos até então. Ele percebe que a língua alemã faz um movimento na mesma época quando troca a palavra usada preferencialmente até então: “Historie”(2), pela palavra que predomina até hoje: “Geschichte”(3) e que ele corresponde ao que percebe no fundo como sendo uma mudança paradigmática em curso. O “topos” da História se desloca da ideia de “mestra da vida”(4), em direção ao que iremos entender como o conceito de História que se constituiu durante a Modernidade e deixou importantes heranças para o que entendemos atualmente como História.
Vou destacar, entre outras possíveis, a preocupação de Koselleck, expressa no título do livro - e que é transversal à todos os argumentos - com a noção de “tempo”, “temporalidade” e “tempo histórico”(5). O argumento de Koselleck passa pelo entendimento de uma ruptura inédita da percepção do tempo e da noção de temporalidade, que ele articula com uma reflexão profundamente crítica sobre a constituição da identidade do “Homem Moderno” na nova fragmentação e simultaneidade do tempo e do espaço, que se concretizam sobre a noção de “progresso” da humanidade, e, que dissocia a experiência do passado da expectativa de futuro dominantes até meados do século XVIII. Ele persegue o que, talvez, considere a mais significativa consequência da Modernidade através da evolução do conceito de História.
Apesar do título principal do capítulo apontar o que o autor considera uma definição sintética do pensamento sobre história e sua função social que predominaram até meados do século XVIII, acho que o subtítulo expressa a síntese da conclusão do autor sobre a mudança de paradigma da história operada pela Modernidade. Koselleck aponta ainda que o topos da História, que “ao longo de cerca de 2 mil anos, (…) teve o papel de uma escola, na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grandes erros.” (KOSELLECK, 2006, p. 42)(6), e correspondia, segundo o autor, a “um espaço de experiência supostamente contínuo” (KOSELLECK, 2006, p. 42)(7), não serve mais diante da experiência Moderna… de movimento e simultaneidades(8).
Para Koselleck, a Modernidade instala uma noção diferente da relação entre o passado e o futuro, gerando uma temporalidade própria da história, conforme o autor:
“Nosso conceito moderno de história [Geschichte] resultou da reflexão iluminista sobre a crescente complexidade da "história de fato" ou da "história em si" ["Geschichte überhaupt"], na qual os pressupostos e condições da experiência escapam, de forma crescente, a essa mesma experiência. Isso é válido tanto para a história universal de longo alcance geográfico, contida no conceito moderno de "história em si" ou "história de fato", quanto para a perspectiva temporal na qual passado e futuro realinham-se recíproca e alternadamente, de maneira contínua.” (KOSELLECK, 2006, p. 16-17).
O surgimento da modernidade, de acordo com ele, se opõe à experiência da tradição num processo que, a despeito de sua continuidade, vai dissolvendo o topos da história através de vários sentidos que originam uma historicidade do próprio topos (KOSELLECK, 2006, p. 47-48)(9). A história, sinal dos novos tempos, é tratada ela mesma como objeto de análise e se na prática faz surgir uma “filosofia da história” na língua alemã “o termo "Geschichte" extraiu, dessa maneira, novas qualidades de experiência a partir da velha fórmula.” (KOSELLECK, 2006, p. 49).
Koselleck descreve como o emprego da palavra "Geschichte" no singular, sem um complemento, como por exemplo, “A História da Guerra do Peloponeso” - é uma ocorrência que começa na segunda metade do século XVIII - à medida que se impõe sobre “Historie” e que se reflete, no período seguinte à Revolução Francesa, na linguagem corrente dos intelectuais com “atributos divinos como "todo-poderosa", "justa", "equânime" e "sacra”.” (KOSELLECK, 2006, p. 49-50) É fruto da exigência que da nova função - uma História geral que que articule as diversas histórias particulares em um único processo e possa identificar nele uma ordem interna e fornecer-lhe um sentido.
Esta história que se afasta do registro de exemplos a serem seguidos - a velha "magistra vitae" de Cícero -, segundo Koselleck, "foi também um resultado da transposição das fronteiras entre história e poética. Passou-se progressivamente a exigir unidade épica também da narrativa histórica." (KOSELLECK, 2006, p. 50). Ele afirma que a necessidade de uma unidade épica do relato histórico trouxe com ela uma exigência de veracidade dos relatos e que tratar as histórias como uma história exige preocupação com uma trama que, além de sentido interno e unidade, revele motivações que expliquem os acontecimentos. Koselleck ilustra bem a questão citando Humbold: "O historiógrafo digno desse nome deve representar cada singularidade como parte de um Todo, o que significa que ele deve também representar em cada uma dessas partes singulares a própria forma da história."(10).
NOTAS:
1. Aqui, e sempre que ocorrer ao longo do texto, me refiro ao conceito de “topos” usado pelo autor no texto (KOSELLECK, 2006, cap. 2 - especialmente nas páginas 41-42), que se refere ao que podemos chamar coloquialmente de “lugar comum”, em relação ao uso de um termo, no caso “história”.
2. O autor explica que o termo estrangeiro Historie “significava predominantemente o relato, a narrativa de algo acontecido”. (KOSELLECK, 2006, p. 48)
3. Geschichte se referindo ao acontecimento em si [Geschehen], uma sequência de ações ao longo de um período de tempo, do que ao seu relato.
4. Em uma análise ligeira, uma coleção de exemplos, que serve aos contemporâneos como um conhecimento que permite entender o presente e planejar o futuro. Ou, de acordo com o autor: “Seu uso remete a uma possibilidade ininterrupta de compreensão prévia das possibilidades humanas em um continuum histórico de validade geral. A história pode conduzir ao relativo aperfeiçoamento moral ou intelectual de seus contemporâneos e de seus pósteros, mas somente se e enquanto os pressupostos para tal forem basicamente os mesmos.” (KOSELLECK, 2006, p. 43)
5. Já no título do livro, Koselleck anuncia sua preocupação com o tempo e a temporalidade e a definição de um “tempo histórico” que segundo ele se constituiria da fricção entre a experiência do passado e a expectativa do futuro, que para o autor é o que de essencialmente se rompe com a Modernidade. No prefácio do livro Koselleck escreve: “a um tipo de determinação temporal que, sem duvida, é condicionada pela natureza, mas que também precisa ser definida especificamente sob o ponto de vista histórico.” (KOSELLECK, 2006, p. 15). Ou ainda: “A hipótese que se apresenta aqui é a de que, no processo de determinação da distinção entre passado e futuro, ou, usando-se a terminologia antropológica, entre experiência e expectativa, constitui-se algo como um "tempo histórico". (KOSELLECK, 2006, p. 16)
6. “A tarefa principal que Cícero atribui aqui à historiografia é especialmente dirigida à prática, sobre a qual o orador pode ser comprovado a partir da história".
Qualquer que seja o ensinamento que subjaz à nossa fórmula, há algo exerce sua influência. Ele se serve da história como coleção de exemplos — plena exemplorurn est historia [a história é cheia de exemplos] — a fim de que seja possível instruir por meio dela.” (KOSELLECK, 2006, p. 43)
7. “No espaço delimitado pelos principados europeus, com seus corpos estatais e ordens estamentais, o papel magistral da história era ao mesmo tempo garantia e sintoma da continuidade que encerrava em si, ao mesmo tempo, passado e futuro.“ (KOSELLECK, 2006, p. 46)
8. “Se a velha história [Historie] foi arrancada de sua cátedra, e, certamente, não apenas pelos iluministas, a quem tanto aprazia servir-se de seus ensinamentos, isso aconteceu na esteira de um movimento que organizou de maneira nova a relação entre passado e futuro. Foi finalmente "a história em si" [die Geschichte selbst] que começou a abrir um novo espaço de experiência. A nova história [Geschichte] adquiriu uma qualidade temporal própria. Diferentes tempos e períodos de experiência, passíveis de alternância, tomaram o lugar outrora reservado ao passado entendido como exemplo.” (KOSELLECK, 2006, p. 47)
9. Segundo o autor “A história dos conceitos [Begriffsgeschichte], da maneira como vem sendo praticada aqui, serve como porta de acesso para capturar esses processos. Ao fazê-lo, evidencia-se a maneira como, apesar das continuidades, nosso topos se desfaz em meio a diferentes sentidos que se deslocam uns aos outros. Sobretudo a partir de então, o topos adquire sua própria história, uma história que subtrai sua verdade.” (KOSELLECK, 2006, p. 48)
10. Nota de Koselleck:
W. von Humboldt, Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers (1821), in Werke, Darrn stadt, t. 1, 1960, p. 590 (Gesammelte Schriften, t. IV, p. 41): "A história [Geschichte] não serve como exemplo a ser seguido ou a ser evitado, exemplos esses frequentemente enganosos e não raro pouco instrutivos. Seu verdadeiro e incalculável proveito consiste antes em explicar e vivificar o sentido das ações no mundo real antes pela forma que os acontecimentos assumem do que por si própria".
BIBLIOGRAFIA:
KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae - Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento. in: Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora Puc-RJ, 2006.