O projeto de produção e apropriação do conhecimento sobre a África em três intelectuais africanos da contemporaneidade
O intelectual e escritor congolês, nascido em 1941, Valentin-Yves Mudimbe, o filósofo benin-marfinense, nascido em 1942, Paulin J. Hountondji e o sociólogo moçambicano, nascido em 1964, Elísio Macamo, são três intelectuais africanos que, embora tenham abordagens distintas, compartilham preocupações comuns sobre a produção e a apropriação do conhecimento sobre a África. Este breve ensaio foi feito para atender parte de uma avaliação do curso de História da África, ministrado pelo professor Cláudio Marinho, no Instituto de História da UFRJ em 2024.1.
LEITURAS
Marcus Figueiroa
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Este ensaio explora como os conceitos desenvolvidos por Mudimbe são fundamentais para enquadrar os projetos de Paulin Hountondji e Elísio Macamo, que buscam desenvolver uma filosofia e uma sociologia africanas, respectivamente. Ambos os projetos se beneficiam da crítica de Mudimbe ao discurso colonial e à construção eurocêntrica do conhecimento sobre a África.
A publicação de A Invenção de África: Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento, em 1988, é um marco da crítica ao discurso colonial e à construção eurocêntrica do conhecimento sobre a África, inevitavelmente comparável a publicação, uma década antes de Orientalismo, de Edward Said, que, literalmente, desnudou para o mundo acadêmico a ilusão de um oriente, inventado pelo ocidente como sua própria alteridade, o inverso da imagem idealizada que construíram de si mesmos.
No livro, Mudimbe analisa como as narrativas coloniais moldaram a percepção da África, frequentemente perpetuando estereótipos e visões distorcidas, e explora conceitos como Gnosis Africana, Africanidades e Estudos Africanos, que são fundamentais para entender como o conhecimento sobre a África foi historicamente construído e como ele pode ser reconfigurado a partir de perspectivas africanas.
Indo mais longe, ele questiona o significado de ser africano e o que pode ser considerado filosofia africana, questiona as dinâmicas de poder presentes na produção do conhecimento sobre a África e esclarece como os discursos estabelecem os universos do conhecimento nos quais as pessoas concebem sua identidade. Ele propõe uma "arqueologia da gnose africana" e analisa os sistemas de conhecimento tradicionais, buscando descolonizar o conhecimento acadêmico africano.
Para Mudimbe gnose é um sistema de conhecimento no qual as experiências concretas são integradas em uma ordem de conceitos e discursos, e relaciona a gnose à busca pelo saber, o questionamento da realidade, os métodos de conhecimento e investigação e a familiaridade com alguém.
Mudimbe usa o termo gnose - que ele adota com o intuito de erguer uma arqueologia dos sentidos do pensamento africano - para se referir ao corpo de conhecimento e sistemas de pensamento que emergem das tradições africanas. Ele argumenta que a “gnose africana” foi frequentemente marginalizada ou distorcida pelo discurso colonial, que impôs uma visão externa e eurocêntrica sobre a África e, segundo ele, deve ser recuperada e reavaliada a partir de uma perspectiva africana, que reconheça a riqueza e a complexidade dos sistemas de conhecimento locais.
A relevância da gnose para a compreensão do conhecimento africano está relacionada à sua capacidade de abranger a "africanização" do conhecimento e os sistemas de pensamento tradicionais. Mudimbe utiliza essa noção como uma ferramenta metodológica para explorar a extensão do conhecimento africano e sua relação com a filosofia, desafiando as concepções convencionais e buscando uma compreensão mais profunda da identidade africana e de seus sistemas de conhecimento.
O conceito de Africanidades em Mudimbe refere-se à multiplicidade de identidades, culturas e experiências que compõem o ser africano. Ele rejeita a ideia de uma identidade africana monolítica e homogênea, enfatizando a diversidade e a complexidade das experiências africanas, e afirma que os Estudos Africanos devem ser vistos como um campo interdisciplinar, que deve ser crítico e reflexivo.
Ele também critica a forma como o conhecimento sobre a África foi historicamente construído e controlado pelo Ocidente, muitas vezes de maneira a perpetuar estereótipos e essencializações e defende que é crucial desconstruir as narrativas ocidentais sobre a África e promover uma produção de conhecimento que seja verdadeiramente representativa das realidades africanas.
Outro termo inventado por Mudimbe é Biblioteca Colonial, que é um conceito desenvolvido para descrever o conjunto de textos, discursos e representações que foram produzidos durante o período colonial e que influenciaram a compreensão e a representação da África e dos africanos. Ele argumenta que a Biblioteca Colonial é composta por obras que moldaram a visão dos estrangeiros e dos próprios africanos sobre a África, contribuindo para a construção de uma narrativa colonial sobre o continente e suas culturas. Este conceito é fundamental para compreender a influência do discurso colonial na formação de identidades e conhecimentos sobre a África.
A ideia de África como uma construção colonial é um dos pontos centrais da abordagem de Mudimbe. Ele argumenta que a representação e a compreensão da África foram fortemente influenciadas pela narrativa colonial, e ele busca descolonizar o conhecimento acadêmico africano, explorando as complexidades dessa relação.
Mudimbe busca compreender a África a partir de suas narrativas, identidades, conhecimentos e representações, desvinculando a ideia de África apenas como um espaço geográfico delimitado, e enfatiza a importância de considerar as múltiplas dimensões culturais, históricas e simbólicas da África, permitindo uma compreensão mais ampla e complexa do continente.
Ele aborda a relação entre poder, conhecimento e alteridade, além das questões metodológicas envolvidas na construção e legitimação de um projeto que se desdobra nos projetos de Paulin Hountondji e Elísio Macamo, que buscam, respectivamente, contribuir para o desenvolvimento de uma filosofia e uma sociologia africanas.
Hountondji propõe, no artigo Conhecimento de África, conhecimento de africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos, publicado em 2008, uma abordagem da filosofia, que busca superar a visão limitada da etnofilosofia e promover uma compreensão mais ampla e crítica das tradições filosóficas africanas.
Ele discute a distinção entre “etnofilosofia e filosofias da África” como duas perspectivas sobre a natureza da Filosofia Africana e a necessidade de uma abordagem autônoma e reflexiva em relação ao conhecimento sobre a África. A distinção entre etnofilosofia e filosofias da África sobrevém da complexidade e da diversidade das tradições intelectuais africanas, bem como a necessidade de uma abordagem crítica e reflexiva na definição do campo da filosofia africana.
Hountondji critica a ideia de que a filosofia africana é uma expressão coletiva e implícita das culturas africanas, como muitas vezes retratada por estudiosos ocidentais, ele argumenta que essa abordagem essencializa e homogeneíza as culturas africanas, negando a individualidade e a capacidade crítica dos filósofos africanos e defende que a filosofia africana deve ser entendida como uma atividade crítica e reflexiva realizada por indivíduos africanos, em vez de ser uma mera descrição das crenças tradicionais.
Hountondji argumenta que a filosofia africana não deve ser reduzida à uma tradição intelectual, que tende a retratar as tradições africanas como homogêneas e estáticas, neste sentido, ele propõe um olhar que reconheça a diversidade e a complexidade das tradições filosóficas no continente, levando em conta a diversidade de perspectivas e a dinâmica das práticas intelectuais locais. A filosofia africana se compõe então de um conjunto de textos e tradições que refletem a riqueza e a complexidade do pensamento filosófico no continente africano.
Ele também defende a importância de uma tradição autônoma de pesquisa em África, orientada pelas necessidades reais das sociedades africanas e enfatiza a necessidade de os africanos se apropriarem ativamente do conhecimento sobre eles e de desenvolverem uma abordagem crítica e reflexiva na produção e apropriação desse conhecimento. Hountondji enfatiza a necessidade de uma tradição autônoma de pesquisa em África, orientada pelas necessidades reais das sociedades africanas e baseada em uma sólida apropriação do legado intelectual internacional.
Elísio Macamo, por sua vez, no artigo intitulado A constituição de uma sociologia das sociedades africanas, publicado em 2002, busca pensar numa sociologia que reflita criticamente sobre as condições existenciais e a relação ambígua que as sociedades africanas têm com a modernidade. Ele critica as abordagens que veem a África como um continente em transformação no sentido contrário ao entendido pela modernidade ou que aplicam modelos de modernização padronizados, sem levar em conta as especificidades locais.
Macamo propõe uma Sociologia Africana por enxergar a necessidade de considerar as particularidades culturais, históricas e sociais do continente africano ao desenvolver teorias sociológicas e compreender as dinâmicas sociais. Ele diferencia o saber tradicional, colonial e africano, evidenciando a diversidade de influências e perspectivas que moldam a compreensão da realidade social em África. Sublinha assim a importância desses diferentes tipos de conhecimento no estabelecimento do que chama de uma “sociologia das sociedades africanas”.
Além disso, ele enfatiza a importância da produção de conhecimento social em África, ressaltando a influência de diferentes perspectivas e saberes na constituição da realidade social. Ele entende que apenas uma sociologia específica para as sociedades africanas pode ser capaz de considerar as particularidades culturais, históricas e sociais do continente, a fim de oferecer uma compreensão mais precisa das dinâmicas sociais presentes nesse contexto.
Para Macamo, uma sociologia africana responde a defesa da necessidade de uma abordagem que leve em consideração as especificidades do continente, tanto em termos de produção de conhecimento quanto na compreensão das dinâmicas sociais. Ele insiste na importância de uma sociologia que seja sensível às realidades africanas e que incorpore as perspectivas locais na produção de conhecimento sociológico.
É interessante notar que o vocabulário que fala do acúmulo de conhecimentos sobre a África inclui termos como "capitalização do conhecimento", "acumulação do conhecimento", "legado intelectual", "processo de produção e capitalização do conhecimento", entre outros. Esses termos são utilizados para descrever a pesquisa, a preservação, e o desenvolvimento do conhecimento sobre a África ao longo do tempo, bem como a importância de uma abordagem crítica e reflexiva na produção e apropriação desse conhecimento. Esse vocabulário, muito bem marcado, expõe o quanto é mister para os africanos se apropriarem ativamente do conhecimento sobre eles e de desenvolverem uma tradição autônoma de pesquisa pautada pelas próprias sociedades africanas.
Relacionando as duas obras percebe-se como os conceitos de Mudimbe sobre o "discurso de poder" e a "alteridade" ajudam a enquadrar o projeto de Hountondji ao fornecer uma base teórica para a crítica da representação eurocêntrica da África. Mudimbe mostra como o conhecimento sobre a África foi historicamente construído a partir de uma posição de poder, que marginaliza as vozes africanas e impõe uma visão externa sobre o continente. Ao reconhecer essas dinâmicas de poder, Hountondji pode argumentar de forma mais convincente que a filosofia africana deve ser uma prática autônoma e crítica, livre das imposições e estereótipos coloniais.
Já quando Mudimbe refere-se à multiplicidade de identidades, culturas e experiências que compõem o ser africano explorando o conceito de Africanidades, ele rejeita a ideia de uma identidade africana monolítica e homogênea, enfatizando a diversidade e a complexidade das experiências africanas. Esse conceito está alinhado com a crítica de Hountondji à etnofilosofia, que tende a homogeneizar as tradições africanas.
Tanto Hountondji quanto Mudimbe veem os Estudos Africanos como um campo inter e multi disciplinar que deve ser crítico e reflexivo. Hountondji argumenta que os Estudos Africanos devem ser orientados pelas necessidades reais das sociedades africanas e devem promover uma tradição autônoma de pesquisa, enquanto Mudimbe enfatiza a necessidade de desconstruir as narrativas ocidentais sobre a África e promover uma produção de conhecimento que seja verdadeiramente representativa das realidades africanas.
Os dois projetos, o de Hountondji de uma filosofia africana e os conceitos desenvolvidos por Mudimbe, estão profundamente ligados na problematização do conhecimento ocidental sobre a África e em suas defesas enfáticas da diversidade, da complexidade e da autonomia intelectual das tradições africanas.
Os conceitos de Mudimbe sobre a construção do conhecimento e a representação da alteridade são igualmente úteis para o projeto de Macamo. Mudimbe destaca como as narrativas coloniais e pós-coloniais moldaram a percepção da África, muitas vezes de maneira distorcida e simplista. Essa crítica permite que Macamo desafie as teorias sociológicas que aplicam modelos ocidentais de modernidade à África sem considerar as complexidades e particularidades das sociedades africanas.
Macamo, adota a perspectiva crítica de Mudimbe, para argumentar que a sociologia africana deve ser construída a partir das experiências e realidades locais, reconhecendo a diversidade e a complexidade das sociedades africanas. Isso implica uma abordagem que valorize os sistemas de conhecimento locais e as vozes africanas, em vez de impor teorias e modelos externos.
Ao reconhecer as dinâmicas de poder e a importância da alteridade trazidas ao debate por Mudimbe, Hountondji e Macamo construíram projetos intelectuais que promovem a valorização das vozes e dos conhecimentos africanos, contribuindo para uma compreensão mais autêntica e realista do continente.
Para concluir, podemos dizer que os conceitos desenvolvidos por Mudimbe fornecem uma base teórica crucial para os projetos de Paulin Hountondji e Elísio Macamo. A crítica ao discurso colonial e à construção eurocêntrica do conhecimento compartilhadas de Mudimbe permite que ambos desafiem as representações estereotipadas da África e promovam uma filosofia e uma sociologia africanas que sejam autóctones, autônomas, críticas e engajadas nas realidades locais.
REFERÊNCIAS
Elísio Macamo. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/El%C3%ADsio_Macamo. Acesso em: 5 jun. 2024.
HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de África, conhecimento de Africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80. 2008. p. 149-160.
MACAMO, Elísio. A constituição de uma sociologia das sociedades africanas. Estudos Moçambicanos, 19. 2002. p. 5-26.
MUDIMBE, V. Y. A invenção da África. Ed. Pedago. 2013. [Introdução e Capítulo 1]
Paulin J. Hountondji. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://fr.wikipedia.org/wiki/Paulin_J._Hountondji. Acesso em: 5 jun. 2024.
Valentin-Yves Mudimbe. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://fr.wikipedia.org/wiki/Valentin-Yves_Mudimbe. Acesso em: 5 jun. 2024.