Memória, História, Documentos, Narrativas

Um diálogo com o artista Gilvan Barreto sobre as relações de sua obra sobre a ditadura militar brasileira e os textos de alguns autores citados nas aulas ou constantes na bibliografia do curso de America Contemporânea da graduação em História da UFRJ, no segundo semestre de 2022.

ARTIGOS

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Este texto é o resultado da primeira etapa de um projeto que foi suscitado por uma conversa com o professor Victor Araújo, como possibilidade de contemplar a avaliação do curso de América Contemporânea do Instituto de História da UFRJ, do qual sou aluno e que dividi em duas etapas de acordo com o cronograma da disciplina. A ideia é relacionar as questões abordadas pelos autores lidos e citados em sala de aula, especialmente, sobre memória, história oral e narrativa com a obra de um artista contemporâneo que aborda a ditadura militar.

A lembrança de uma conversa com o artista Gilvan Barreto, sobre uma citação do professor e filósofo Luiz Roberto Salinas Fortes - incluída no seu livro “Paraíso”, que reproduzo abaixo:

“Mas o único que nos resta é a imaginação, esse poder de negação do mundo. O indivíduo que não recorre à imaginação e que se submete à tirania da paisagem é um conservador por excelência, um reacionário. Ele admira o pôr-do-sol…”

E, certamente, o desejo pessoal de unir temas como memória, ditadura e arte, mais o fato de ter uma relação pessoal com Gilvan Barreto, me levaram a formular a ideia de confrontar a minha leitura da bibliografia proposta, e mais as indicações surgidas em aula e diálogos com o professor, com a pesquisa e a obra do artista.

O diálogo com o artista foi estabelecido inicialmente através de mensagens e num encontro informal no apartamento de classe média, que serve de morada para ele, a esposa e dois filhos, e de escritório para ele. Discorri sobre a minha proposta e estabelecemos que os próximos passos seriam formulados por mim como tópicos ou questões que desenvolveremos em sessões pessoais gravadas por mim, ou através de correspondência eletrônica, à se adequar às nossas respectivas agendas.

A primeira questão que me ocorreu formular, resgata uma coisa que Gilvan falou na nossa conversa e que reproduzo aqui livremente:

“…partir de um trauma… questionar os documentos foi o que me levou a fazer “Moscouzinho”… eu precisava criar os meus próprios documentos para disputar essa narrativa, como fiz nos “Postcards from Brazil”, e procurar legitimar essas memórias/documentos como meu trabalho de artista.”

Em “W ou a memória da infância”, Georges Perec consegue, alternando numa narrativa autobiográfica, memórias pessoais e ficção, uma recriação poderosa de sua experência do holocausto. Assim faz Gilvan Barreto em “Moscouzinho”, quando pela primeira vez, segundo me relatou “lhe ocorreu produzir “documentos históricos”.

Aqui vale uma descrição da obra, nas palavras do autor:

“…é a recriação das memórias de uma criança que cresceu num reduto comunista em plena ditadura no Brasil. Jaboatão (PE), minha cidade natal ganhou o apelido de Moscouzinho por ter um proletariado politizado que elegeu o primeiro prefeito comunista do Brasil, em 1947. Nascido em 1973, ainda sob a ditadura militar (1964-1985), desde muito pequeno acompanhava meu pai em compromissos políticos. Quando ele adoeceu, corri para contar a história. Não deu tempo. O processo foi longo, quase quatro anos para reinventar a República Socialista do Afeto. Diante dos arquivos forjados da ditadura, surgiu a necessidade de criar simbolicamente novos documentos para o futuro. Nasceram fotocolagens nas quais misturo documentos do DOPS com fotos de álbuns de família. Sonhos, pesadelos e memórias compuseram esta Rússia tropical.”

Alguns assuntos que merecem destaque à luz da nossa bibliografia, já se apresentam neste momento. Começo pelo da criação dos "documentos históricos" pela burocracia do regime civil-militar brasileiro, no caso da obra de Gilvan, e recorro ao filósofo Zygmunt Bauman, quando ele afirma a importância de características essencialmente modernas como a burocracia na viabilização do holocausto e que, de acordo com ele, colocam em questão a própria modernidade, não mudaram nem foram desmontados até hoje. E que, provavelmente, seguimos sem reconhecer claramente os sintomas e sem criar mecanismos de autodefesa outros, além dos que já se reconhece a fragilidade.

É neste lugar que opera Gilvan Barreto, num “ponto cego” onde, segundo o filósofo Paul Ricoeur, existe “um fosso lógico e fenomenológico” entre as reconstruções que se pode fazer do passado e o reconhecimento, no sentido aristotélico de reminiscência, já que segundo autor:

“Em relação ao difícil conceito da sobrevivência das imagens do passado, seja qual for a conjunção feita entre as noções de reconhecimento e de sobrevivência do passado, o reconhecimento, tomado como um dado fenomenológico, permanece, por assim dizer, um pequeno milagre.”

E que valida, seja a memória como documento, seja o documento como memória. Segundo Ricoeur, “não temos nada melhor que a memória para nos assegurar de que alguma coisa se passou realmente antes que declarássemos lembrar-nos dela.”

É neste ponto, provavelmente, que a obra de Gilvan Barreto atinge sua máxima potência, em camadas e níveis que só o processo e a linguagem artística permitem, se organizando num discurso rigoroso e reconhecível, como matriz irrevogável a serviço de outras construções teóricas, históricas e afetivas.

Faz sentido para o artista, concluir que esta é, mais ou menos planejada, mais ou menos consciente, a estratégia que ele adotou para, diante da questão das fontes documentais, recriar e legitimar documentos e com eles disputar narrativas no presente.

Para concluir, entendo como o artista confrontou o problema enfrentado pelo escritor Primo Levi, no caso dele, a determinação nazista de destruir e impossibilitar a história dos campos de concentração. Como escreveu a historiadora Jeanne Marie Gagnebin, “eles deveriam se tornar duplamente inenarráveis: inenarráveis porque nada que pudesse lembrar sua existência subsistiria e porque, assim, a credibilidade dos sobreviventes seria nula.”

Como Levi constatou perplexo: de que jeito contar uma história que o público tende a rejeitar pelo próprio absurdo?

Um caminho foi certamente o que encontrou Patrízio Guzman em suas obras sobre a ditadura militar chilena e sei que ela pode ser tratada como um paralelo da de Gilvan Barreto sobre a ditadura civil-militar brasileira sob vários aspectos.

Me refiro, mais especialmente, a obra “Postcards from Brazil” para refletir sobre o papel destas obras como ato ético de dignificar existências e dar voz aos que tiveram negada até a memória.

Gilvan escreve na apresentação do livro “Paraíso”:

“Há séculos a memória desta terra é forjada pelo uso sistemático da violência. Os ciclos de intimidação são constantes e têm o mesmo alvo de sempre: o meio ambiente e as comunidades mais vulneráveis.”

“Com a visão entorpecida, a beleza então seria um valor exclusivamente estético? Há de ser algo mais sofisticado que apenas um impacto visual. Acredito que a beleza não está na paisagem, mas na poesia que vemos nas coisas.”

“Vivemos um tempo em que as imagens viajam mais que os homens. Cabe a quem cria essas representações e registros visuais uma projeção mais rica do espaço geográfico. Enchê-lo de sentidos. Fazer enxergar o esqueleto e a pele, o passado e os horizontes das imagens.”

Bibliografia:

ARISTÓTELES - Da Memória E Reminiscências: Erudição Livro 3. Trad.: Marcos A. Tomazin. e-book Kindle.

BARRETO, Gilvan - Paraíso. Org: MATOS, Diego. Rio de Janeiro, Cobogó, 2022.

BARRETO, Gilvan - Moscouzinho. Recife, Tempo de Imagem, 2012.

BAUMAN, Zygmunt - Modernidade E Holocausto. Rio de Janeiro, Zahar, 2012. e-book.

CORTÁZAR, Julio - A Casa Tomada. In: Bestiário. Buenos Aires, Alfaguarra, 2016. e-book.

FORTES, Luiz Roberto Salinas - Retrato Calado. São Paulo, Cosac Naify, 2012.

GUZMÁN, Patrizio - “O Botão De Pérola”. Longa-metragem documentário. (Visto em sala de aula).

HATOUM, Milton - A Noite Da Espera. São Paulo, Companhia das Letras, 2017.

JV Araújo - Coisas estranhas. In: A bruta cordialidade dos dias. Teresina, Cancioneiro, 2021. e-book.

KUCINSKI, Bernardo - Você Vai Voltar Pra Mim E Outros Contos. Cosac Naify, 2014.

LEVI, Primo - Os Afogados E Os Sobreviventes. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2022.

RICOEUR, Paul - Memória, história, esquecimento. A versão original desta conferência foi escrita e proferida em inglês pelo autor em 8 de março de 2003 em Budapeste sob o título “Memory, history, oblivion” no âmbito de uma conferência internacional intitulada “Haunting Memories? History in Europe after Authoritarianism”.

PEREC, Georges - W ou a memória da infância. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.