Flutuar com o quadril
Uma aproximação do Judô, através da descrição do "Uki-goshi", o "Tokui-waza", de um modesto Shodan, com um longo caminho - pela frente...
JUDÔ
Marcus Figueiroa
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"Pratico Judô
o tempo todo
pratico andando
pratico sentado
pratico andando
no meio da multidão
pratico olhando
para teus pés
para ver onde
está
o centro do seu
equilíbrio."
Paulo Leminsk
"Flutuar com o quadril" ou "quadril flutuante", a tradução Leminskiana do Uki-goshi, meu tokui-waza, é uma homenagem que presto ao poeta-judoca.
Uki-goshi
Comece na posição natural pelo lado direito. Quando girar para a direita, puxe o oponente com a mão direita para fazê-lo avançar um passo com o pé esquerdo. Desequilibre-o para a diagonal direita dele, puxando um pouco com a mão esquerda. Coloque o seu braço direito em volta da cintura dele e se aproxime, colocando seu pé direito paralelo ao pé do oponente. Leve para trás seu pé esquerdo e segure o oponente com firmeza contra o seu quadril.
Gire o quadril.
Segure-o pela manga quando ele cair.
E essa é a descrição de Jigoro Kano do "Arremesso flutuante com o quadril" que foi o golpe favorito dele, e é com um certo orgulho que eu partilho a preferência, "tokui" - além da pequena constituição física do fundador do Judô, um homem que foi enorme com 56 quilos, tenho magros 60.
Tokui-waza é o golpe preferido em japonês, a língua universal nos tatames. E, no Judô, as palavras são importantes e nos pedem um carinho - quem nos dera - leminskiano com elas. Isso parece chato, mas acostuma e aí fica bom.
O tokui-waza de Jigoro Kano, é uma das técnicas de Nage-waza, projeção. No Judô nós falamos em "projetar" o oponente, uma coisa que se aprende logo no início. Ela já é cobrada de um faixa amarela, pois faz parte do Dai ikkyo, "o primeiro princípio ou ensinamento", que é o primeiro grupo dos cinco do Go-kyo, que todo praticante deve dominar antes da faixa preta.
O Go-kyo - go é o número cinco em japonês e kyo quer dizer grau, etapa de aprendizagem - contém cinco grupos de oito técnicas, que são as quarenta técnicas de projeção compiladas e aprimoradas ou criadas por Jigoro Kano, e que resumem o espírito do Judô, com segurança e de forma didática e racional. A máxima eficiência - Seiryoku-Zen' Yo, e o benefício mútuo - Jita-Kyoei, são também príncipios básicos do Judô Kodokan.
O Uki-goshi também faz parte do Randori No Kata, uma série de sequências coreografadas, representativas de todas as técnicas e princípios do Judô, sendo ela a primeira das 3 técnicas escolhidas para representar a categoria de Koshi-waza - técnicas de quadril -, no Nage No Kata - Formas de arremessar -, o primeiro de uma dezena, cujo estudo aprofundado se inicia na faixa-preta. E que no livro Judô Kodokan, Kano descreve assim:
Você e seu parceiro se aproximam até ficarem a 1,8 metro de distância.
Ele dá um passo para a frente com o pé esquerdo e levanta o punho direito, avança com o pé direito e tenta golpear o topo de sua cabeça com a base do punho. Antes que o golpe o atinja, avance um passo para a sua diagonal direita com o pé esquerdo.
Abaixe um pouco o ombro esquerdo e dobre-se para passar o seu braço esquerdo sob o braço direito do parceiro e em volta da cintura dele.
Puxe-o contra o seu corpo, desequilibrando-o para frente.
Com a mão direita, segure o meio da manga esquerda dele, pelo lado de fora, e gire para a sua direita a fim de fazer o arremesso.
Um faixa-preta, apesar de, por motivos diversos, dominar mais de uma centena de técnicas no seu dia-a-dia, termina por eleger um "kit básico" com não muito mais que uma dúzia de técnicas, entre projeções, combinações, sequências, defesas, contra-golpes, controle e finalizações que efetivamente utiliza em Randori, o nosso "treino livre", a luta de judô e em Shiai, quando o judoca se testa com um outro numa competição pelo Ippon, o ponto completo, o golpe perfeito! Porque, para um judoca, o como é essencial.
Todo judoca desenvolve o seu tokui-waza, aquelas técnicas que ele melhor aplica, que ele confia e sabe que funcionam quando as coisas estão complicadas! As que se adaptam ao seu corpo e ele, ao longo do "caminho", vai refinando e adequando às suas características individuais. As que fazem ele ir se acostumando a ouvir, até dos adversários: "me mostra aquela técnica, por favor?".
O benefício mútuo - Jita Kyoei, é um princípio do Judô e ensinar tudo o que sabe é a natureza do judoca. É o ambiente em que somos formados.
"O meu Uki-goshi", a gente fala assim entre judocas, vem de meu pouco tamanho e do "meu desacerto", pernas curtas e braços longos num corpo leve, porém ágil. O que faço é provocar um giro rápido da cintura escapular do oponente e deslocar a sua cintura pélvica com um ligeiro golpe ou com o apoio do meu quadril, mas como os meus oponentes não costumam facilitar que eu faça isso durante uma luta, desenvolvi estratégias diversas de alcançar o meu objetivo de acordo com a situação. Às vezes dá certo.
Uma das características principais do Uki-goshi, é que o giro do corpo vai em direção ao golpe do adversário, por exemplo, se ele desfere um soco ou um chute com o braço ou a perna direita, você se defende avançando a perna esquerda para um ponto próximo ao pé esquerdo dele e gira o corpo, para a esquerda, um pouco mais de 90 graus, batendo com a lateral do quadril na cintura dele, enquanto o envolve pelas costas com o braço esquerdo e usa o direito para controlar a queda.
Adaptei-o ao meu Kumikata - a pegada, que costumo fazer invertida - Kenka-yotsu, parto da pegada de esquerda contra um oponente que pega de direita e vice-versa, e desenvolvi algumas variações de acordo com a movimentação que situação permite, usando basicamente o mesmo Kuzushi, desequilíbrio, e variando o Tsukuri, minha movimentação, e o Kake, o jeito de projetar. E uso, alternativamente, no caso de resistência do adversário, invertendo a direção do Kuzushi após a primeira entrada, Tani-otoshi ou Kouchi-gari, passando a pegada da mão esquerda para as costas do adversário e projetando para a esquerda, e Ko-soto-gake, entrando para a direita e mantendo a mão esquerda na gola. Não vou descrever estes golpes, mas quem ficou curioso pode vê-los facilmente nos vídeos que "linkei" em buscas simples nas principais redes sociais.
Kuzushi, quer dizer desequilíbrio em japonês, e para um judoca são as formas de deslocar o oponente para fora do seu centro de equilíbrio. Tsukuri, é a forma como o judoca se posiciona em relação ao desequilíbrio do oponente para, aproveitando a situação executar o kake, que é a forma como ele projeta o oponente, controladamente, com as costas no tatame, permitindo-o proteger o corpo dele - Ukemi, em japonês - e mantendo o domínio sobre ele no chão se for necessário.
Ukemi - defender o corpo, é a primeira coisa que um judoca aprende e que ele nunca deixará de praticar na sua vida. No Judô, o que se aprende antes de tudo, não é como vencer um confronto, é como cair. E a parte mais importante do Ukemi são as formas de cair. No começo é necessário, pois não há como lutar sem cair, e as quedas são perigosas para os que não sabem se proteger ou as temem. Depois virão a estética, a forma perfeita de cair, o controle total dos nervos e do corpo no espaço. E a filosofia: saber cair é ressignificar "a queda" em saída para uma situação que parecia insolúvel, e levantar inteiro, pronto pra cair de novo, quantas vezes precisar. Devo dizer que saber cair bem e ser um bom Uke, te torna uma presença desejada nos tatames e te traz muitos parceiros fiéis de treino, além da satisfação que um judoca sente de praticar o Jita- Kyoei.
Como cantou Paulo Vanzolini, "Reconhece a queda e não desanima / Levanta, sacode a poeira / E dá a volta por cima..."
Voltando ao meu tokui-waza, a situação mais comum que me acontece é a do oponente tentar dominar a parte alta da minha gola ou a minha cabeça, com a mão direita e a minha manga direita com a sua mão esquerda . Resisto o que posso com o braço esquerdo e com um tranco pra baixo e pra trás o provoco a avançar o pé direito e subir a mão, o que antecipo entrando com o meu pé esquerdo entre os dele e o meu braço esquerdo por baixo do braço direito dele encaixando meu ombro em sua axila e a minha mão sobre a sua omoplata esquerda. Girando o meu pulso de baixo para cima, desvio o movimento da mão dele como se sacasse uma espada: agarro o pulso dele por dentro, ou a manga dele, se for por fora, e fazendo um movimento circular com o braço, numa espiral para cima e para direita, desequilibro ele na sua direção diagonal frontal esquerda. Entro com o pé direito ao lado do esquerdo dele, batendo a lateral esquerda do meu quadril na cintura dele enquanto continuo girando para a esquerda e finalizo a projeção mantendo o domínio do braço esquerdo dele, e se for o caso, sigo aplicando uma "chave de braço" - Kansetsu-waza -, neste caso Ude-hishigi-juji-gatame, uma técnica que provoca a luxação do cotovelo do oponente, caso ele não anuncie a desistência da luta.
Uma variação, que costumo usar quando o oponente evita que eu alcance a sua manga, é pegar a lapela esquerda dele com a minha mão direita e entrar com o braço esquerdo por baixo da axila direita dele, agarrando a sua faixa, enquanto entro fundo o quadril com a minha perna esquerda entre as dele, e giro forte para frente, levantando a perna esquerda e "rolando" com ele.
Outra variação, boa quando o adversário me agarra pelas duas lapelas, é entrar pelo lado direito, mantendo a pegada com a mão esquerda na lapela direita do adversário e passando o meu braço direito pelas costas, ou envolvendo o seu pescoço como num Koshi-guruma - o "giro pelo quadril", um golpe que faço abraçando a cabeça do oponente, como numa "gravata", e girando para frente enquanto o apoio com o quadril num ponto abaixo do seu centro, e rolo para a frente caindo com ele em kesa-gatame.
Kesa-gatame - "pegada de pescoço e braço", é uma técnica de Osae-komi-waza - "aprisionamento" - as formas de "imobilizar" o oponente e esvaziá-lo de força e energia ao mesmo tempo em que preserva as suas próprias. Em geral o Osae-komi progride para uma "finalização", que seja inutilizar um dos membros do adversário usando uma técnica de Kansetsu-waza - "luxação das articulações", ou nocauteá-lo com uma técnica de Shime-waza - técnicas de estrangulamento sanguíneo ou respiratório. O normal nestes casos é a desistência do adversário, que anuncia batendo a mão ou o pé repetidamente ou gritando "maitá" - "desisto" em japonês.
Um encontro comum é com adversários que como eu tentam manter a pegada da gola por baixo do meu braço esquerdo. Controlo a distância, empurrando o peito ou o ombro dele com a mão esquerda, enquanto pego na manga ou na gola esquerda com a mão direita. Cedo repentinamente o braço esquerdo e aproveito a reação de puxada dele para agarrá-lo nas costas aprisionando o braço direito dele com o meu ombro. Ele tenta soltar se deslocando para a esquerda, aproveito e entro girando o corpo na direção do deslocamento e com todo o meu peso na lateral direita dele dou um passo firme com a minha perna direita para a frente dele enquanto engancho a perna esquerda dele, por fora com a minha perna esquerda, entrando com um Osoto-gari. Uso o apoio na perna dele pra dar um pulinho pra frente com a perna direita e varrer a perna esquerda dele com o meu gancho, derrubando-o para a lateral esquerda dele. Termino em Kesa-gatame, se for o caso.
Por fim, a situação de enfrentar um oponente que luta de forma excessivamente defensiva. Em geral, eles pegam com as duas mãos na minha gola, ou numa "pegada cruzada" nas costas e a outra na manga do mesmo lado, e mantém os braços fortemente esticados e o quadril projetado para trás. O que faço: controlo a distância com uma pegada, com minha mão esquerda na manga esquerda dele, na altura do cotovelo e apoio a outra mão na lateral direita do corpo dele. Aproveitando que ele já está desequilibrado para frente, cedo um pouco, provocando que ele dê um ou dois passos enquanto me desloco lateralmente e uso a mão direita na minha lapela para afrouxar um pouco o meu Judô-gi, o Kimono de Judô, e ajudar a liberar o meu ombro esquerdo. Aproveito a reação dele de tentar segurar minhas costas, transfiro meu peso para o pé esquerdo, agarro a faixa dele na altura do nó e puxo firmemente para cima, capturando o centro dele enquanto puxo a manga numa direção ascendente desequilibrando-o para diagonal frontal esquerda dele. Giro para a esquerda colocando o pé direito próximo e do lado externo do pé direito dele e varro a sua perna esquerda com a minha perna direita sem interromper o giro do meu corpo. Para este caso, eu adaptei um Harai-goshi, o tokui-waza do meu Sensei, e que todos os faixas-pretas formados por ele tem a obrigação de saber fazer com maestria.
Sensei, é nas palavras de Eric Hobsbawm: "[Um] mestre intelectual para quem se deve algo que não pode ser retribuído”. Eu acrescento que ele é um guia e modelo, absolutamente generoso e que adota todos os alunos com a dedicação de um pai e o comprometimento de um padrinho.
O meu Sensei é o Kodansha Oswaldo Simões, um grande atleta que fez história no esporte, e Kodansha - é um título de reconhecimento para os judocas que se esforçaram para aprender e compartilhar com outras pessoas o que é o judô e os seus valores, sendo um representante dos princípios filosóficos e educacionais do caminho suave criado pelo mestre Jigoro Kano - um educador humanista e universalista, nos termos de sua época , que se relacionou com personagens que são a medida da sua estatura internacional - cuja história é o guia historicizante deste Do - o caminho do Ju - a gentileza, e que se esforçou sempre para ampliar as referências e provocar o assunto de como os modos de lutar (esportivamente ou não) em seus aspectos técnicos, caminha unido às constantes construções de sentidos éticos e estéticos na sociedade, - um prolífico escritor e cidadão do mundo que merece ser conhecido e divulgado para além dos tatames.
BIBLIOGRAFIA
KANO, Jigoro - Judô Kodokan. São Paulo: Cultrix, 2008.
KANO, Jigoro - Energia Mental E Física: Escritos Do Fundador Do Judô. São Paulo: Pensamento, 2008.
LEMINSKI, Paulo - Toda Poesia. São Paulo: Companhia Das Letras, 2013.
FRÉMAUX, Thierry - Judoca. São Paulo: Fósforo, 2023.
MONTEIRO, Fabrício Pinto - Transformações técnicas das lutas sob uma óptica da História Social: o boxe inglês entre os séculos XVIII e XIX. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 24, V. 9, N. 2 (mai./ago. 2017). p. 178-203.