AIMÉ CÉSAIRE - Discurso Sobre o Colonialismo

Documento desenvolvido para atender ao trabalho final do curso de Mundo Contemporâneo do Bacharelado em História da UFRJ, ministrado pela professora Lais Correa em 2022.2.

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No "Discurso Sobre O Colonialismo"(1), Aimé Césaire articula toda a sua verve política, num texto enérgico, ritmado e envolvente, que denuncia o autor ser poeta de ofício, para tecer uma análise mordaz e sarcástica da invenção e instrumentalização do racismo pela intelectualidade europeia, compara a ideologia colonialista do modernismo europeu ao nazismo que acabou de traumatizar a Europa, e cobra os pensadores e políticos europeus a se posicionarem sobre a questão.

Césaire começa por descrever a civilização europeia como decadente, doente e moribunda. Nas palavras do autor:

"O fato é que a chamada civilização "europeia", civilização ocidental", tal como foi moldada por dois séculos de governo burguês, é incapaz de resolver os dois principais problemas aos quais sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema colonial." (CÉSAIRE, Aimé. 2020, p.9).

Para Césaire "A Europa é indefensável." O fato é que enquanto falava, pensava e vestia sua ideia de "civilização", "cristianismo", "filantropia", expansão da "justiça", da "igualdade", da "liberdade", cometia as brutalidades mais selvagens, os atos mais inomináveis dos quais a humanidade tem notícias e que "da colonização à civilização a distância é infinita;"

O autor ironiza o espanto europeu com o holocausto e expõe o fato de que, aos corações e mentes europeus, a desumanidade em Hitler é ter submetido uma população branca e europeia ao que eles já impunham aos povos colonizados havia séculos. E, indo além, sentencia: "a colonização funciona para descivilizar o colonizador;". Não há saída para o impasse: ser civilizado x justificar a colonização. Desumanizar o outro é, no mesmo ato, se desumanizar.

Para Césaire é evidente a "desonestidade colonizadora" que legitima a posteriori a sua ação para justificar o seu progresso material. Mas, metido num beco sem saída da falência moral, é o colonizador quem, sem perspectiva viável de saída, atravanca arrogantemente o caminho do colonizado. Adverte ainda aos europeus: não se iludam com a "civilização americana" que temerosamente parece encantá-los. Ela é o pior fruto, ainda mais apodrecido daquilo que eles plantaram.

Césaire se comunicando com Hannah Arendt que alguns anos mais tarde elabora seu célebre discurso sobre "a banalidade do mal" e que remete um filme inquietante lançado há apenas uma década, em português intitulado: "ele está de Volta", do cineasta alemão David Wnendt, é categórico ao afirmar que em cada pequeno burguês há um Hitler, pronto para colaborar com um projeto genocida ou suicida, provavelmente inseparáveis aliás. Essa é, no entanto, em si mesma, a condenação desta burguesia que se consumou a responsável por toda a "barbárie da história".

Por fim, após desmontar os conceitos modernos de humanidade e humanismo, o autor se direciona seus argumentos à ideia colonialista de nação, que é de acordo com ele um "fenômeno burguês". Césaire enxerga uma única saída para a Europa que é assumir nas suas colônias uma "nova política de nacionalidades" que respeite a diversidade dos povos e das culturas.

Concordamos com Césaire que:

"A verdade é que a perda da própria Europa está inscrita nessa política, que a Europa, se não for cuidadosa, perecerá do vazio que causou ao seu redor." (CÉSAIRE, Aimé. 2020, p.73).

Concluímos com uma constatação e duas considerações que, ao nosso ver, se destacaram:

A obra de Aimé Césaire é um lastro e um farol anti-colonial e anti-racista, cuja atualidade e contextualidade com as inquietações contemporâneas do humanismo acadêmico e da militância política a tornam fundamental e sua difusão, ainda que tarde, aumenta sensivelmente nos dias atuais.

Sobre a autoria intelectual, junto com os amigos Senghor, Diop e Damas, do uso do termo com uma conotação positiva, paira uma questão: o apagamento das mulheres participantes do movimento(2), como por exemplo Paulette Nadal - além de intelectual atuante, anfitriã dos célebres saraus literários que reuniam os jovens pensadores e artistas das colônias residentes em Paris - e Suzanne Césaire - poeta e autora enorme e incontornável(3), companheira de Césaire por uma vida -  e colaboradoras em várias revistas engajadas, entre elas  a "L'Étudiant Noir".

Mas é a relação com Fanon - pupilo e mestre, que têm em comum a origem e uma mesma base de formação e experiência e se envolvem com questões filosóficas, políticas, ideológicas e estéticas comuns - que ilustra, talvez, a principal contradição de Césaire: apesar da inflamação e do radicalismo de sua oratória, a sua atuação política é considerada conciliadora e continuísta para o ex-aluno, que parte, literalmente, para a guerra(4).

No final de 1961, poucos meses antes da independência da Argélia, Césaire recebe a notícia da morte precoce de Fanon. Profundamente impactado, imediatamente escreve um artigo defendendo a memória do amigo que se distancia, desta vez, para sempre:

"... sua revolta foi ética, seu esforço, generoso. Ele não aderiu a uma causa. Entregou-se a ela. Inteiro. Sem relutância. Sem vacilar. Sem esperar recompensa. Há nele o absoluto da paixão." (5)

Fanon permanecerá na lembrança de Césaire que, pouco mais de duas décadas depois, em um poema o define: "guerreiro-silex".(6)

Sobre o autor:

O poeta, dramaturgo, ensaísta, político e filósofo anti-colonial e da negritude Aimé Fernand David Césaire, nasceu em Basse-Pointe, na então colônia francesa da Martinica, em 26 de junho de 1913. Filho de um pequeno funcionário - o pai era controlador fiscal - e de uma costureira, no seio de uma família numerosa, pertencente à uma precária "classe média" criola.

Foi um estudante aplicado do Lycée Schoelcher de Fort-de-France e galgou com brilho todo o sistema educacional da colônia, até aos 18 anos conseguir uma bolsa de estudos secundários em Paris, no Lycée Louis Le Grand, onde conheceu outros jovens intelectuais oriundos de outras colônias francesas do Caribe e, sobretudo, da África, e envolveu-se com o ativismo dos estudantes negros na metrópole. Cursou pedagogia na École Normal Supérieure e escreveu seus primeiros ensaios e artigos políticos tratando da questão colonial e do racismo europeu neste período.

O encontro com esse grupo, além do "choque" de ser tratado com um preconceito até então desconhecido por ele, se revelou fundamental para o processo de auto reconhecimento de Césaire como negro e pertencente ao pedaço da humanidade que foi excluído de sua condição pelo sistema colonial moderno.

Neste período ele participou da fundação da revista "L'Étudiant Noir" (1934)(7) onde o conceito atual de "Negritude" aparece pela primeira vez e se desenvolve(8). Atuou intensamente na formação do que se chamaria de uma consciência pan-africanista, se aproximou da Juventude Comunista e se casou com a escritora e poetisa "Surrealista" Suzanne Roussi com quem retornou para a Martinica em 1939.

De volta à terra natal, como a esposa, se tornou professor na mesma escola que o formou. Juntos fundaram mais uma revista fundamental, a "Tropiques", que visava a reapropriação do patrimônio cultural martinicano e mergulharam na política local. Césaire se filiou ao Partido Comunista Francês e se elegeu deputado da Assembléia Nacional da França (1945-1993) e para a prefeitura local (1945-2001). Alguns anos mais tarde, divergente do stalinismo vigente, participaria da fundação do Partido Progressista da Martinica.

Junto com Diop criou em 1947 a também importante revista "Présence Africaine", que reuniu a nata dos pensadores anti-coloniais naquele momento, e neste periódico, em 1950, Césaire lançou o texto que veio a se tornar, editado como livro, uma das suas obras mais lidas.

NOTAS

(1) CÉSAIRE, Aimé. 2020.

(2) BONI, Tanella. 2014.

(3) RIZZI, Nina. 2021.

(4) BOUVIER, Pierre. 2010.

(5) Citado por Rogério de Campos na contribuição: Retorno a Aimé Césaire, Uma Cronologia. in. CÉSAIRE, Aimé. 2020, p. 116.

(6) Idem.

(7) GUARIENTI, Franciele. 2020.

(8) "No entanto, é na terceira edição que Césaire, apresenta o artigo “Consciência racial e revolução social” em que exprimirá pela primeira vez a palavra “negritude”, neologismo criado por Césaire, dará origem ao movimento e esteve presente em grande parte de sua produção literária. Nas palavras do autor: “A negritude é o simples reconhecimento do fato de ser negra, a aceitação do nosso destino negro, da nossa história e da nossa cultura”. (GUARIENTI, Franciele. 2020.)

BIBLIOGRAFIA

A Batalha de Argel (1966), Direção de Gillo Pontecorvo, Itália/Argélia.

BONI, Tanella. Femmes en Négritude: Paulette Nadal et Suzanne Césaire. in. Rue Descartes. 2014/4 (#83). Disponível em <https://www.cairn.info/revue-rue-descartes-2014-4-page-62.htm> Acesso em: 11 de dezembro de 2022.

BOUVIER, Pierre. Aimé Césaire, Frantz Fanon: Portraits de décolonisés. Paris: Les Belles Lettres, 2010.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso Sobre O Colonialismo. Trad.: Claudio Willer. Ilust.: Marcelo D`Salete. Cronologia: Rogério de Campos. São Paulo: Veneta, 2020.

GUARIENTI, Franciele. L'Étudiant Noir: a importância da revista na construção da identidade negra na França. in. Baobabe (site). 2020. Disponível em <https://www.baobabe.com.br/blog/letudiant-noir-a-importancia-da-revista-na-construcao-da-identidade-negra-na-franca/> Acesso em: 11 de dezembro de 2022.

RIZZI, Nina. TSUNAMI DAS ANTILHAS - Os escritos de Suzanne Césaire permitiram que uma identidade negro-caribenha e anti-colonial surgisse na literatura. in. Quatro Cinco Um - a revista dos livros (site). 2021. Disponível em <https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/literatura-em-lingua-francesa/tsunami-das-antilhas> Acesso em: 11 de dezembro de 2022.

VÈRGES, Françoise. Negro Sou, Negro Ficarei! Aimé Césaire. Entrevista. Paris: Albin Michel, 2005. Disponível em <https://www.geledes.org.br/aime-cesaire/> Acesso em: 11 de dezembro de 2022.

STADLER, Thiago David e KRACHENSKI, Naiara. História, colonialismo, epistemologia: Aimé Césaire, Frantz Fanon e o pensamento decolonial. in. Revista Estudos Libertários, UFRJ, Vol.1. 

VÈRGES, Françoise. Negro Sou, Negro Ficarei! Aimé Césaire. Entrevista. Paris: Albin Michel, 2005. Disponível em <https://www.geledes.org.br/aime-cesaire/> Acesso em: 11 de dezembro de 2022.