A História Geral da África, vista de dentro por Joseph Ki-Zerbo e a História dessa História, em perspectiva, através do olhar de Muryatan Barbosa
Este breve ensaio foi feito para atender parte de uma avaliação do curso de História da África, ministrado pelo professor Cláudio Marinho, no Instituto de História da UFRJ em 2024.1.
LEITURAS
Marcus Figueiroa
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No contexto dos anos 1960, que vivia o período pós-Segunda Guerra Mundial, o mundo viu o colapso dos impérios coloniais europeus, com muitas nações na África, na Ásia e no Caribe lutando por sua independência frente às potências do velho continente. A Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), criada em 1945, se tornou rapidamente um fórum crucial dessas reivindicações, refletindo a mudança nas dinâmicas de poder global e a crescente pressão pelo fim das práticas e políticas colonialistas. A ONU entre outros organismos de governança internacional desempenhou um papel fundamental para a consolidação das independências destes países como parte da agenda global.
Um marco histórico no processo de descolonização global, por exemplo, é a resolução 1514 da ONU, adotada em 14 de dezembro de 1960, intitulada Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais, composta por uma série de declarações que afirmam o direito dos povos à autodeterminação e a necessidade de superar o colonialismo, sobretudo na África e na Ásia. Esta resolução teve um impacto profundo na política internacional e na luta pela autodeterminação dos povos colonizados e teve várias implicações significativas.
A resolução respaldou os movimentos de independência em todo o mundo, nos anos seguintes, dezenas de países africanos e asiáticos conquistaram a independência. Também foi responsável pelo aumento da pressão sobre as potências coloniais para concederem independência aos seus territórios. A ONU tornou-se um fórum onde os líderes dos movimentos de independência podiam ganhar apoio internacional e a entrada de novos estados independentes na ONU alterou a dinâmica de poder dentro da organização. Esses novos membros frequentemente formaram blocos para promover seus interesses comuns, como o Movimento dos Não-Alinhados.
A resolução 1514 também impactou o campo acadêmico e a historiografia, junto com o movimento de descolonização forneceu o contexto político e moral para iniciativas como o projeto da História Geral da África (HGA), um esforço monumental apoiado pela Unesco com o objetivo de reescrever a história do continente africano a partir de uma perspectiva interna e descolonizada.
Este ensaio analisa as leituras de Joseph Ki-Zerbo e Muryatan Barbosa sobre o processo de construção e consolidação da HGA, revelando uma convergência de perspectivas e uma ênfase comum em aspectos fundamentais. Ambos destacam a importância de uma abordagem endógena e interdisciplinar na escrita da história africana, bem como os desafios e as realizações do projeto, e enfatizam a importância da necessidade de superar preconceitos e visões eurocêntricas.
Joseph Ki-Zerbo, historiador e político, nascido em 1922 na atual Burkina Faso, teve a responsabilidade de escrever a introdução geral da obra, da qual também foi um dos editores. No texto, escrito em 1981, ele aborda a metodologia e os desafios envolvidos na construção da obra, da qual é também um dos editores.
Ki-Zerbo, apesar de reconhecer que a cronologia é a espinha dorsal da matéria histórica, começa questionando a importância da cronologia na historiografia africana. Ele argumenta que nem todas as datas têm a mesma importância e que, em alguns casos, é mais apropriado usar termos mais gerais, em vez de datas específicas. Essa abordagem evita a falsa precisão e reconhece a variabilidade e a complexidade das fontes históricas africanas.
Ki-Zerbo explica que é necessário um conhecimento íntimo das produções culturais e intelectuais africanas, incluindo sua temática, suas técnicas, seus códigos, seus estereótipos, suas questões formais e digressões, a língua em evolução e as expectativas da audiência em questão, e enfatiza a importância de entender a casta dos transmissores da tradição, suas regras de conduta, suas formações, seus ideais e suas escolas.
Uma das preocupações de Ki-Zerbo é o surgimento a cada ano de dezenas de novas publicações sobre a história africana, muitas das quais, reconhece, construídas sob uma perspectiva positiva. Ele alerta, entretanto, para os perigos dessa produção demasiada, como a cacofonia resultante de pesquisas desordenadas, sem uma coordenação efetiva e das discussões inúteis entre escolas que priorizam os pesquisadores em detrimento do objeto das pesquisas. Ki-Zerbo argumenta que, por essas razões e pela integridade da própria ciência, é fundamental uma tomada de posição, a partir de um referencial estabelecido por equipes de pesquisadores africanos. Ele também atenta para a relevância da tradição oral na historiografia africana, segundo ele, as narrativas orais são uma fonte vital de conhecimento histórico, oferecendo insights que muitas vezes não estão disponíveis em fontes escritas.
Num texto publicado na Revista Brasileira de História em 2012, e intitulado A construção da Perspectiva Africana: uma história do projeto HGA, o historiador brasileiro, nascido na Suécia em 1977, Muryatan Barbosa, oferece uma visão detalhada do processo organizacional e das decisões administrativas que moldaram a HGA. Ele descreve o papel central da UNESCO e dos pesquisadores africanos na coleta de fontes, especialmente as de tradição oral, e na construção de uma metodologia científica. Barbosa destaca a importância das reuniões e dos encontros que normatizaram o trabalho de levantamento de fontes e organização de institutos, bem como a participação de figuras-chave como Cheikh Anta Diop e Joseph Ki-Zerbo. Ele também menciona os desafios enfrentados, como a necessidade de superar visões eurocêntricas e garantir uma perspectiva africana na narrativa histórica.
O projeto da HGA foi iniciado em um contexto de descolonização e busca por uma identidade africana autêntica. A UNESCO, sob a direção de Amadou-Mahtar M'Bow, impulsionou a criação de uma obra que pudesse contrapor as narrativas eurocêntricas e colonialistas que dominavam a historiografia africana. A HGA foi organizada em vários volumes, cada um coordenado por um editor principal e diversos colaboradores. Entre os editores estavam renomados historiadores africanos como o próprio Joseph Ki-Zerbo. O projeto envolveu uma série de reuniões e comitês, incluindo o Comitê Científico e o Comitê Editorial, que desempenharam papéis cruciais na revisão e aprovação dos capítulos.
Um dos objetivos centrais era a organização e preservação das fontes históricas africanas e isso incluía tanto fontes escritas quanto orais. Havia um temor de que essas fontes se perdessem definitivamente, o que seria um golpe irreparável para a historiografia africana. A coleta e organização dessas fontes eram vistas como essenciais para a construção de uma narrativa histórica autêntica e abrangente.
Outro objetivo crucial era sintetizar o conhecimento histórico sobre a África, que estava disperso e mal distribuído no tempo e no espaço, consolidando esse conhecimento em uma obra coesa que pudesse servir como referência para futuras pesquisas e para a educação. Isso ajudaria a identificar lacunas no conhecimento histórico e direcionar futuras investigações.
Os organizadores buscavam superar os preconceitos colonialistas que haviam dominado a historiografia africana até então. A HGA visava mostrar as contribuições africanas para a civilização humana, algo visto como extremamente necessário no período pós-colonial. A obra deveria ser uma história da África vista desde o seu interior, com os africanos como sujeitos ativos e não meros objetos da história.
Além disso, a obra deveria ser concebida para tratar a África como uma totalidade, enfatizando a unidade do continente. Isso significava que a história deveria ser vista de uma perspectiva pan-africana, considerando as inter-relações regionais e a história das ideias e civilizações africanas, assim como deveria valorizar as contribuições das tradições e da arte africana, focando na história das sociedades, civilizações e instituições africanas. Isso incluía um reconhecimento do patrimônio cultural africano e dos fatores que contribuíram para a unidade do continente.
Havia uma preocupação em garantir a ampla divulgação da HGA, especialmente dentro da África, o que tornava fundamental a tradução dos volumes para várias línguas africanas e a redução dos custos para tornar a obra acessível. O plano incluía facilitar a difusão do conhecimento por programas públicos de comunicação de massa.
Os organizadores também se preocuparam com a formação, organização e integração de centros de documentação em países africanos, algo visto como mister para a conservação das fontes e para a continuidade das pesquisas históricas no continente. Os objetivos dos organizadores da "História Geral da África" eram ambiciosos e multifacetados, não apenas visavam corrigir as distorções colonialistas, mas também criar uma base sólida para a pesquisa histórica futura, promovendo a unidade e a valorização do patrimônio cultural africano.
A obra, porém, enfrentou várias dificuldades ao longo de sua concepção e execução. Uma das principais foi a ausência constante de historiadores africanos importantes para o projeto, a falta de participação desses especialistas prejudicou o andamento do projeto e a profundidade das análises históricas. A falta de participação de muitos membros da Comissão também foi um problema recorrente, a falta de resposta aos contatos do Conselho Executivo dificultou a coordenação e a tomada de decisões. Essa falta de engajamento atrasou o progresso do projeto e criou lacunas na colaboração necessária para uma obra de tal envergadura.
Reuniões menores e mais focadas ajudaram a normatizar o trabalho de levantamento de fontes e organização de institutos. A reunião administrativa em Paris, em 1969, foi crucial para estabelecer diretrizes claras e práticas. A criação de centros de pesquisa e documentação, especialmente focados na tradição oral, foi essencial para a redação da HGA. A publicação do Guia das Fontes Históricas da História da África foi um passo importante nesse sentido.
Outro problema foi o atraso na redação e na editoração dos primeiros volumes da obra. Os volumes I e II, que deveriam estar finalizados em 1974, só foram concluídos em 1978. Esses atrasos não apenas comprometeram o cronograma do projeto, mas também afetaram a coesão e a continuidade do trabalho, dificultando a manutenção de uma linha editorial consistente.
Houveram também desentendimentos significativos quanto ao conteúdo dos capítulos entre editores e autores. Esses conflitos sobre a abordagem e a interpretação dos eventos históricos geraram tensões e atrasos adicionais. A necessidade de alinhar diferentes perspectivas e garantir uma narrativa coesa foi um desafio constante.
A coleta e a organização das fontes históricas foram tarefas árduas. Uma das reuniões, destacou a necessidade de formar quadros técnicos africanos para a coleta de dados e de realizar encontros de especialistas em tradição oral para construir uma metodologia científica sobre o assunto. A complexidade e a dispersão das fontes, muitas das quais eram orais e não documentadas, representaram um desafio logístico e metodológico importante para os historiadores.
O projeto também enfrentou pressões políticas e ideológicas. A necessidade de superar os preconceitos colonialistas e de construir uma narrativa histórica que valorizasse as contribuições africanas para a civilização humana exigiu um esforço consciente para evitar influências externas e garantir uma perspectiva genuinamente africana. Isso envolveu debates intensos sobre a abordagem científica e democrática, a totalidade da África e a valorização das tradições e da arte africana.
Barbosa destaca que o período entre os anos de 1972 e 1978 foram anos polêmicos, neste período, o projeto enfrentou intensos debates e conflitos internos que forjaram o espírito da obra, foi um tempo de discussões acaloradas sobre como a história da África deveria ser escrita. Os debates focaram em como apresentar a África como um sujeito ativo na história, em vez de um objeto passivo. Os organizadores enfrentavam desafios para definir uma metodologia que fosse ao mesmo tempo científica e representativa da diversidade cultural e histórica do continente africano. A busca por uma abordagem que valorizasse as tradições orais e as fontes locais foi um dos pontos de tensão.
Já o período entre 1978 e 1982, foi marcado por uma abordagem mais prática e focada na realização do projeto, a publicação dos primeiros volumes foi um marco importante, apesar dos atrasos, a concretização dessa etapa trouxe um senso de realização e validou os esforços dos organizadores.
Para Barbosa a insistência em utilizar fontes locais e tradições orais ajudou a construir uma narrativa mais autêntica e representativa da história africana. Isso foi uma resposta direta aos debates sobre a necessidade de uma perspectiva interna. Os conflitos metodológicos e teóricos levaram a uma rejeição consciente das narrativas eurocêntricas. A obra enfatizou tanto a unidade quanto a diversidade do continente africano. Ao abordar a história das sociedades, civilizações e instituições africanas, a HGA destacou os fatores que contribuíram para a unidade do continente, sem ignorar sua diversidade cultural e histórica.
Tanto Joseph Ki-Zerbo quanto Muryatan Barbosa oferecem perspectivas complementares sobre o processo de construção e consolidação da coleção História Geral da África. A correlação entre as leituras revela uma convergência de perspectivas e uma ênfase comum em aspectos fundamentais, ambos os autores destacam a importância de uma abordagem endógena e interdisciplinar na escrita da história africana, bem como os desafios e as realizações do projeto. Ki-Zerbo foca mais na metodologia e na necessidade de uma visão endógena, enquanto Barbosa fornece uma visão detalhada do processo organizacional e dos desafios enfrentados. Juntos, eles oferecem uma compreensão rica e multifacetada do projeto HGA, destacando a importância de uma abordagem coordenada, interdisciplinar e crítica para a escrita da história africana.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Muryatan. A construção da Perspectiva Africana: uma história do projeto HGA. Revista Brasileira de História, 32 (64). 2012. p. 211-230.
KI-ZERBO, Joseph. Introdução Geral. In Historia Geral da África, V.1, XXXI-LVII. 2010.
Joseph Ki-Zerbo. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://fr.wikipedia.org/wiki/Joseph_Ki-Zerbo. Acesso em: 7 jun. 2024.
Muryatan Barbosa. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Muryatan_Barbosa. Acesso em: 7 jun. 2024.